Desde a Declaração de Alma-Ata, pela Organização Mundial de Saúde em 1978, que não há plano ou estratégia nacional de saúde que não inclua como eixo prioritário o reforço dos cuidados de saúde primários (CSP), elemento fundamental para produzir ganhos em saúde e bem-estar sem sobrecarregar os orçamentos públicos. No entanto, neste domínio a passagem do papel para o terreno não tem sido fácil.
Sem menosprezar o enorme progresso observado nas últimas décadas a nível dos CSP, o facto é que o enfoque dos sistemas de saúde continua demasiado hospitalocêntrico. Apenas dois exemplos do sistema de saúde português: (i) as Unidades Locais de Saúde (ULS), que integram na mesma Entidade Pública Empresarial CSP e cuidados hospitalares, têm todas sede num hospital, o que significa que a gestão de topo da ULS terá naturalmente mais proximidade com os problemas dos segundos do que com os primeiros; e (ii) o peso da despesa com CSP no total da despesa do SNS baixou de 18% em 2001 para 13% em 2009, mantendo-se à volta deste valor até 2013 (último ano para o qual a Conta Satélite da Saúde disponibiliza informação), o que mostra que a opção política (sobretudo até 2009) foi canalizar recursos para os hospitais, em detrimento dos CSP.
A que se deve esta aparente contradição entre os planos e estratégias de saúde e a prática política? Essencialmente à existência de um modelo de organização e financiamento que privilegia o aumento do número de atos realizados (consultas, cirurgias, etc.), em detrimento da obtenção de resultados medidos em termos de ganhos em saúde. Como os atos são praticados sobretudo em hospitais, enquanto os CSP se focam mais na obtenção de ganhos em saúde via atividades de prevenção da doença e promoção da saúde, a consequência é a perpetuação do domínio dos hospitais nas prioridades dos agentes políticos (em sentido lato) e da opinião pública.
Tal conclusão implica que uma efetiva prioridade aos CSP só será obtida com uma alteração do atual modelo de organização e financiamento do SNS, por exemplo através da centralização do financiamento nos CSP e da introdução de liberdade de escolha e concorrência a nível hospitalar. Foi este o modelo proposto, em 2013, pela equipa da Porto Business School, que o Prof. Nuno Sousa Pereira e eu próprio coordenamos, no Relatório “O Setor da Saúde: Da Racionalização à Excelência”, realizado a pedido do Health Cluster Portugal.
A primeira vertente da nossa proposta é a generalização de um pagamento por capitação ajustada pelo risco às instituições prestadoras de cuidados de saúde primários, ficando estas responsáveis pelos pagamentos dos medicamentos, MCDT e de alguns cuidados de saúde hospitalares (aqueles que forem sensíveis aos CSP). A capitação corrigida pelo risco consiste no pagamento a cada prestador de um montante pré-determinado por cada beneficiário registado, garantindo como contrapartida a prestação de um conjunto identificado de serviços. O montante financeiro atribuído é calculado de acordo com o que se estima ser o nível de cuidados primários necessários, corrigido pelas características individuais observáveis do utente e que são suscetíveis de influenciar o seu estado de saúde, a sua procura de cuidados e a sua utilização de recursos. Como os encargos com os cuidados prestados por outros agentes passam a estar sob a responsabilidade financeira do prestador de cuidados de saúde primários, garante-se que este não tem incentivo a encaminhar desnecessariamente o paciente para a rede de cuidados hospitalares para evitar o custo de responder diretamente às suas necessidades, e reforça-se o incentivo à procura de prestadores de cuidados hospitalares mais eficientes, no sentido em que geram mais ganhos em saúde com menos custos.
A segunda vertente da nossa proposta consiste no alargamento do princípio da liberdade de escolha por parte do utente e na promoção do aumento da concorrência entre os prestadores, quer de CSP, quer de quaisquer outros serviços de saúde, nomeadamente hospitalares. A liberdade de escolha nos CSP é o mecanismo que visa garantir a prestação de serviços adequados, desincentivando a opção de redução de custos pela via da diminuição da qualidade dos cuidados. Com a restrição financeira imposta pela capitação e com uma efetiva liberdade de escolha do utente, o prestador de CSP será incentivado a prestar serviços de qualidade a baixo custo, para o que terá de aumentar a eficiência na prestação. Por outro lado, a concorrência entre hospitais, acompanhada de um financiamento que depende da procura, irá incentivar um maior ajustamento entre os atributos que o consumidor de cuidados procura e as características que os prestadores oferecem, com a melhoria da relação qualidade/custo. Para que este incentivo seja efetivo, tem de ser acompanhado pela real possibilidade de unidades ou serviços serem encerrados, seja por falta de viabilidade económica, de desajustamento face à procura ou de insuficiente qualidade dos serviços prestados, sendo necessário criar um mecanismo que assegure esse encerramento nos hospitais públicos (já que no setor privado o mercado assegura esse papel). A eliminação dos prestadores menos eficientes induzirá um comportamento de procura permanente de melhorias, inovação nos processos e nos serviços que conduzam a uma diminuição de custo sem comprometer a qualidade.
Em suma, a adoção da nossa proposta permitiria garantir a sustentabilidade e assegurar a qualidade dos cuidados prestados, sensibilizar os prestadores para a obtenção de ganhos em saúde, ao mesmo tempo que colocaria efetivamente pela primeira vez os CSP no centro do sistema de saúde.
Álvaro Almeida
Professor Associado, Faculdade de Economia da Universidade do Porto