Literacia em saúde: a responsabilidade é de todos

Literacia em saúde: a responsabilidade é de todos

A autonomia que é reconhecida aos cidadãos enquanto principais responsáveis pela sua saúde leva a uma maior participação nos processos de decisão seja no âmbito da prevenção, no âmbito do diagnóstico ou no da terapêutica.

Exige-se hoje um papel ativo do cidadão na gestão da sua saúde e dos episódios de doença. É expectável que se aproprie dos mecanismos necessários para lidar melhor com estes processos, de forma a conseguir uma orientação equilibrada entre a melhor evidência existente, a experiência e as possibilidades reais dos profissionais de saúde e respetivas instituições e as suas próprias expectativas, ideias e opiniões.

A expressão tutelar deste princípio operacionaliza-se num consentimento (ou dissentimento) informado. O assentimento é a expressão da sua vontade livremente formulada. A informação é a chave para o esclarecimento e afirmação da real liberdade na decisão. Só uma pessoa informada estará em condições de expressar a sua vontade de forma adequada, livre e esclarecida.

É simples perceber este contexto no exemplo comum da toma de um qualquer medicamento ou da realização de um ato cirúrgico, naturalmente proposto no seu melhor benefício, em que a pessoa pode livremente aceitar ou recusar, ainda que as consequências possam apresentar um impacto potencialmente negativo na sua vida. Mas temos mais dificuldade em perceber o mesmo mecanismo para os processos relacionados com o diagnóstico ou com o acesso aos serviços de saúde e ainda mais com algumas atitudes preventivas, onde recorremos frequentemente a uma atitude paternalista, assumindo que a decisão é consonante com o melhor interesse da pessoa.

Mas pode não ser. São escassos os ensaios clínicos sobre processos de diagnóstico e sobre muitas das atitudes preventivas para o indivíduo saudável. Os resultados representam evidência escassa para uma orientação cientificamente validada. As orientações baseiam-se muitas vezes em opiniões de peritos e na sua própria perceção da realidade. A controvérsia é comum e funciona como um campo aberto para a instalação de lobbies onde ganha que fala mais alto e não necessariamente melhor.

Neste contexto, cada vez mais as pessoas percecionam a necessidade de informação e recorrem a fontes alternativas ao profissional de saúde. Na avaliação da Google®, sobre o interesse ao longo do tempo, na última década em Portugal, o assunto “saúde” aparece sempre acima da mediana e em crescendo, apesar de pequenas variações, desde o ano de 2010, onde se registou um valor médio de 65%, até 2018 com 71%.

A saúde é um tema que interessa às pessoas e o ambiente da net é facilitador, permitindo uma pesquisa na intimidade do seu próprio dispositivo eletrónico, e facilmente acessível na maior parte dos contextos do dia-a-dia.

A questão da qualidade da informação disponível é fulcral para o funcionamento deste sistema e são bem conhecidos os problemas relacionados com a qualidade dos conteúdos disponibilizados. É notória a ausência de mecanismos de controlo de qualidade, sejam internos numa revisão técnica e científica eficaz, sejam externos na resposta a grelhas validadas de auditoria, e que implica a existência de demasiados erros na informação disponível, de níveis de escrita inapropriados à população alvo a alcançar, e de enviesamentos significativos da informação em benefício de interesses nem sempre visíveis para quem lê.

O resultado é que apesar de a informação estar facilmente disponível, os níveis de literacia da população não são bons, com mais de metade da população portuguesa avaliada em vários estudos a apresentar níveis problemáticos ou inadequados de literacia, e num inquérito que incluiu jovens universitários verificamos que o acesso à internet como fonte preferencial de educação para a saúde se associou significativamente a níveis mais baixos de literacia.

Ratzan (2000) define a literacia como a “capacidade em obter, processar e entender a informação básica em saúde, bem como o conhecimento dos serviços necessários para fazer opções apropriadas de saúde”. Para melhorar a literacia teremos de ser eficazes na estratégia de comunicação, na sua acessibilidade, e na capacidade de a personalizar.

Foi neste contexto que iniciámos em 2016 o projeto metis, com a missão de garantir informação para todos, numa linguagem clara e acessível, disponível através de um acesso baseado na net, com o compromisso de respeitar elevados padrões de rigor científico e de incorporar a melhor evidência existente.

Esta plataforma funciona em ambiente web, através da página de base em www.metis.med.up.pt, mas também nas redes sociais e no e-mail, cobrindo o leque de opções da forma como se acede à informação. O computador de secretária ou portátil tem um contexto mais relacionado com o trabalho, ao passo que os tablets e sobretudo os smartphones se assumem como ferramentas de consulta do dia-a-dia.

A avaliação desta experiência é muito positiva com mais de 1 milhão de acessos ao sítio eletrónico, com uma presença constante e impactante nas redes sociais, com exportação do modelo para o ambiente escolar, intervindo em diversas escolas básicas e secundárias do país e apoiando o ensino nomeadamente nas atividades de enriquecimento curricular, e com o estabelecimento de uma linha de comunicação com os utilizadores que lhes permite gerar uma questão com base numa dúvida que será respondida por um profissional de saúde competente numa perspetiva de educação para a saúde e capacitação do cidadão.

Esta estratégia responde ao necessário reposicionamento dos profissionais de saúde face à era da informação. Na atual velocidade de processamento da comunicação e nos constrangimentos próprios da disponibilidade possível, não é expectável que o cidadão guarde as suas dúvidas para perguntar na consulta seguinte, qual modelo do mestre-escola, nem é expectável um acompanhamento absoluto em tempo real. Mas não substitui a necessária intimidade da clínica, no ambiente próprio, nem a responsabilidade da decisão partilhada na relação com a pessoa, com saúde ou com doença.

Estamos num novo paradigma na relação da Medicina com as pessoas. Do modelo paternalista evoluímos para um modelo deliberativo, trazendo o indivíduo ao centro da decisão que partilha. Isto implica aprofundar conhecimentos e transformá-los em literacia capaz de alavancar uma capacitação efetiva da pessoa nos processos de saúde, envolvendo-a, orientando-a e responsabilizando-a, para uma melhor saúde.

Paulo Santos
MD, PhD

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