O processo de inovação que tem o seu início no laboratório, identificando novas moléculas e futuros potenciais medicamentos tem um longo caminho a percorrer, caracterizado por múltiplos obstáculos e barreiras até poder chegar à prática clínica e ser verdadeiramente útil ao doente.
Neste processo de inovação, a investigação clínica desempenha um papel capital e incontornável. Uma nova molécula, um novo potencial tratamento, precisa de ser testado no homem e os seus efeitos e benefícios avaliados e comprovados, assim como a sua toxicidade. Esta avaliação faz-se através dos ensaios clínicos que inicialmente envolvem um numero reduzido de voluntários procurando verificar a segurança da sua utilização, para continuar através de estudos realizados em números elevados de doentes em que o efeito do potencial medicamento é comparado com outro grupo de doentes que não recebem o medicamento, grupo de controle.
A realização de ensaios clínicos exige um grande rigor metodológico bem definido na Norma de Boas Práticas Clinicas (ICH-GCP Guidelines) e legislação europeia sobre ensaios clínicos transposta para a legislação nacional, oferecendo evidência científica que é claramente superior à obtida por quaisquer outros métodos. Os ensaios clínicos surgem assim como a base fundamental do conhecimento clinico cientifico [1]. É neste contexto que é crucial perceber o valor e a importância da investigação clínica
baseada em ensaios clínicos randomizados e com inclusão de doentes em número adequado à questão que se procura responder através da realização do ensaio [2].
O ensaio clínico é pois a base do conhecimento médico científico orientado para o interesse do doente, é o pilar em que se deve apoiar a prática clínica e a participação na sua realização coloca o investigador/médico em contacto com uma prática médica mais actualizada e baseada no rigor e exigência processual e muitas vezes disponibiliza ao doente acesso a tratamento e acompanhamento que não está acessível na prática clínica.
Os ensaios clínicos devem, portanto, ser fomentados e a sua realização é a melhor maneira (ciência baseada na evidência) de criar condições para uma prática clínica de qualidade. Os custos da realização de ensaios clínicos são, no entanto, muito grandes e envolvem múltiplos componentes necessários para garantir o seu rigor e validade científica assim como a protecção do doente.
Aliás, é claramente consensual em Portugal, neste momento, a necessidade de apoiar a investigação clínica em saúde, nomeadamente a participação em ensaios clínicos.
Os ensaios clínicos podem ser da iniciativa do investigador ou da iniciativa da indústria. Estes dois tipos de ensaios clínicos obedecem às mesmas normas de exigência: o cumprimento das Boas Práticas Clínicas (ICH-GCP Guidelines) e legislação europeia e nacional. Nos ensaios clínicos da iniciativa da indústria, a indústria é o promotor do ensaio e o investigador apenas executa o protocolo definido pela indústria. Por ser uma actividade muito regulamentada e que exige um grande nível de controlo de qualidade,
existem organizações profissionais de apoio logístico a quem são subcontratadas responsabilidades do Promotor, nomeadamente no planeamento e gestão do ensaio clínico. No caso de ensaio clínico da iniciativa do investigador, é o investigador/instituição académica que assume o papel de promotor do ensaio, assim como a responsabilidade do desenho e da execução do ensaio clínico. O investigador que desenha e promove um ensaio clínico precisa de um apoio logístico organizado, de qualidade e eficaz, mas com custos que lhe permitam a realização do ensaio no âmbito do financiamento do projecto científico. No caso dos ensaios clínicos da iniciativa do investigador, é necessário existirem infra-estruturas nacionais que funcionam como CROs sem fins lucrativos.
Os ensaios clínicos de iniciativa da indústria têm o particular interesse de ser a indústria que realiza todo o financiamento do ensaio clínico, custeando toda a organização do ensaio socorrendo-se de CROs que funcionam também como empresas e prevendo no seu orçamento todas as despesas inerentes à execução do protocolo nos centros de ensaio. Em 2010, a Polónia, encomendou um estudo para analisar a situação do País no contexto dos ensaios clínicos promovidos pela indústria em comparação com outros países da União Europeia. Nas conclusões do relatório considera-se a relevância económica desta actividade salientando-se a contribuição dos ensaios clínicos para uma melhor qualidade da prática médica, mas também a sua contribuição para a economia da Polónia, oferecendo uma importante fonte de financiamento para um sistema de saúde cada vez mais oneroso, para além de permitir economias relevantes na utilização de novos medicamentos [3].
É aqui particularmente importante relembrar que as razões de escolha dum centro de ensaios clínicos pela indústria, se baseia em diversos factores entre os quais assumem particular relevo a quota de mercado potencial, i.e., dimensão económica do país, a relação entre a qualidade de execução e os custos de execução do ensaio e, finalmente, a identificação de investigadores que são líderes internacionais na área científica do ensaio. Para que Portugal venha a ter mais solicitações da indústria para a realização de ensaios clínicos é fundamental que Portugal consiga criar condições estruturais que permitam compensar a sua posição débil no primeiro factor mencionado (dimensão), fazendo com que os outros dois factores joguem a seu favor, ou seja centros de investigação clínica de excelência com custos razoáveis e identificação de investigadores com reconhecimento a nível internacional.
A identificação de centros e investigadores com reconhecimento internacional depende directamente da realização de ensaios clínicos da iniciativa do investigador. São estes ensaios clínicos que conduzem naturalmente a comunicações científicas e publicações nas revistas de maior impacto científico da especialidade. São ainda os ensaios clínicos da iniciativa do investigador aqueles que ajudam a construir infra-estruturas e equipas científicas e são a base necessária para que os centros de ensaio que os planeiam e realizam venham a se considerados como centros de referencia nacional e internacional em investigação clínica na respectiva especialidade.
É necessário ter bem presente esta premissa incontornável: para haver mais ensaios clínicos da iniciativa da indústria é necessária a realização de mais ensaios clínicos da iniciativa do investigador.
É neste contexto que Portugal tem de actuar, tomando medidas urgentes para apoiar e fomentar a realização de ensaios clínicos de iniciativa do investigador para que se desenvolvam em Portugal competências que garantam uma boa relação entre a qualidade/custos de execução e existam investigadores líderes internacionais na respectiva área científica.
É necessário abrir regularmente concursos para o financiamento de ensaios clínicos de iniciativa do investigador e, particularmente importante, e a existência de infra-estruturas de apoio logístico à Investigação Clinica, deve ser considerado prioritário e objecto de apoio financeiro regular.
A “European Science Foundation” publicou em 2009 um relatório sobre a importância dos ensaios clínicos de iniciativa do investigador e a sua necessidade para melhorar os cuidados de saúde na Europa, ao mesmo tempo que chama a atenção para o facto de estes ensaios clínicos serem a pedra fundamental para a translação dos conhecimentos obtidos no laboratório (investigação básica) para a sua utilização na prática clínica. As recomendações principais deste relatório incluem a necessidade de melhor categorização e simplificação dos diversos tipos de ensaios clínicos, a importância das infra-estruturas de apoio à realização de ensaios clínicos de iniciativa do investigador e a simplificação e uniformização dos processos regulatórios a nível de toda a União Europeia, propriedade intelectual, etc [2].
Na área da investigação clínica foi já concretizada a participação de Portugal como país fundador do ECRIN-ERIC e, neste contexto, está também em processo de constituição um consórcio PtCRIN – Portuguese Clinical Research Infrastructure Network, cujo principal objectivo é constituir-se como rede de suporte à realização e promoção de investigação clínica em Portugal. Uma função importante desta rede será facilitar o acesso dos centros de investigação clínica de Portugal a outras redes europeias e aos programas de investigação clínica da União Europeia. Outra função importante desta rede será também a identificação de áreas científicas em que Portugal é já competitivo a nível europeu. A promoção da internacionalização e o consequente maior acesso a programas de financiamento da União Europeia é um passo fundamental no desenvolvimento da investigação clínica em Portugal.
Neste Consórcio participa a AIBILI (Associação para a Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem), a única infra-estrutura tecnológica do Ministério da Economia para a área da Saúde sem fins lucrativos existente em Portugal. A AIBILI está, aliás, em condições únicas para desempenhar um papel relevante neste contexto, uma vez que é a sede e Centro Coordenador da Rede Europeia de Investigação Clínica em Oftalmologia, European Vision Institute Clinical Research Network – EVICR.net [4]. Esta rede reúne 96 centros de excelência de investigação clínica de 18 países da União Europeia e tem já em curso sete ensaios clínicos multinacionais da iniciativa do investigador. De particular relevo é o fato de três destes ensaios clínicos da iniciativa do investigador serem financiados pelo 7o Programa Quadro da União Europeia.
Verifica-se também que a indústria considera actualmente de particular interesse a existência de redes orientadas para patologias específicas como é o caso da EVICR.net, estando já a financiar três ensaios clínicos multinacionais desenhados e a ser executados por investigadores/centros de ensaio da rede EVICR.net.
O caminho a percorrer é claro. É necessário incentivar em Portugal a realização de investigação clínica da iniciativa do investigador que tem de ser apoiada por infra-estruturas que façam o apoio logístico, sem fins lucrativos, que permitam garantir as condições técnicas adequadas e necessárias à realização de ensaios clínicos com todo o rigor científico e que dêem visibilidade internacional à investigação científica feita em Portugal. Existem áreas científicas médicas facilmente identificáveis, pela actividade já demonstrada, que têm de ser imediatamente apoiadas para garantir a sua solidificação e que devem servir de modelo e referência para que novas áreas científicas atinjam o mesmo desenvolvimento e visibilidade internacional.
Portugal deverá também ser realista e aceitar que não poderá competir internacionalmente em todas as áreas, apostando claramente nas áreas médicas em que existe já excelência e competitividade reconhecida internacionalmente.
Referências bibliográficas
1. Sackett DL, Richardson WS, Rosenberg W, Haynes RB. Evidence-Based Medicine—How to Practice and Teach EBM. New York: Churchill Livingstone, 1997, 250 pp.
2. European Science Foundation. (2009) An European Science Foundation Forward Look: Investigator-Driven Clinical Trials. Available online (10/03/2009) at http://www.esf.org/publications/forward-looks.html.
3. Clinical Trials in Poland – Key Challenges. PWC – PricewatehouseCoopers. November 2010: 1-86. Disponivel online em: http://www.pwc.com/gx/en/pharma-life-sciences/publications/clinical- trials-in-poland-2010.jhtml
4. EVICR.net. European Network of Clinical Research in Ophthalmology: Information Update – November 2012. Ophthalmologica 2013 (DOI: 10.1159/000346133).
José Cunha-Vaz
Associação para a Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem (AIBILI)