Sistema de saúde – reflexões para a sua reforma

Sistema de saúde – reflexões para a sua reforma

Artur Osório – Médico e Docente na Porto Business School

No SNS, desde há anos, mas agora de uma forma mais marcante, manifestam-se sintomas preocupantes, com deficits progressivamente agravados, com expressão evidente no campo operacional e consequentemente na acessibilidade e na qualidade percetível e técnica dos serviços prestados. Não vale a pena exorcizar feitos passados, bondades presentes ou exibir números politicamente matizados, porque as evidências são demais partilhadas por doentes e profissionais .

O SNS é subfinanciado ao mesmo tempo que é muito mal gerido, não por culpa de todos os seus gestores, mas da teia administrativa e cultural em que exercem – mais vocacionada para a presença de” almas” passivas e de criatividade neutralizada. No  contexto deste SNS, gera-se uma cómoda irresponsabilidade, informada por uma cultura centralizadora e politicamente repetitiva.

Os Portugueses, na sua maioria, querem manter intactos os grandes princípios norteadores do seu Sistema de Saúde, mas pouco a pouco, vão reconhecendo que a dinâmica social, técnica e política, cria uma pressão financeira no SNS que o País tem dificuldade em suportar. Uma dívida pública e privada das maiores do mundo, um crescimento do PIB que pode ser efémero e mesmo assim metade do necessário, não permite vender ilusões, camuflando dificuldades ou empurrando disfarçadamente para o cidadão, encargos que o Estado deveria suportar. Há um jogo de sombras que urge terminar, com uma assunção de entendimentos políticos num quadro onde o pragmatismo e a seriedade, vençam complexos de outra natureza .

Sei que as medidas aqui apresentadas, são difíceis, porventura impossíveis de implementar no atual contexto, mas nem por isso devem deixar de ser expostas e meditadas. Como diz o filósofo  Maurice Merleau-Ponty – Para poder ver o mundo, é preciso romper a nossa familiaridade para com ele.

 

1 – Alterar a legislação que rege o setor da saúde

A legislação consequente ao Artigo 64º da Constituição da República, se bem que inspirada  no  modelo social  europeu,  tornou-se  com  o  decorrer  do  tempo prolixa, contraditória e desadequada. Não é necessária uma revisão constitucional, mas somente dar unidade e uma linha condutora, ao que hoje não passa de uma manta de retalhos – expressão de circunstâncias temporais e domínios partidários. É especialmente premente terminar com a dicotomia prestadora entre setor público, privado e social e promover uma sã concorrência – muito bem regulada. A descentralização e a municipalização da gestão das Unidades Públicas, também será determinante .

As prestações de mera complementaridade, prejudicam os doentes e o sentido que deve ser dado à abordagem da doença e do doente. A matriz legislativa existente, gerou uma cultura e uma prática duplicadora de prestações, que transfigura gestores, profissionais e os próprios doentes, causadora de quebras de efetividade clínica e de eficiência operacional, com consequentes desperdícios financeiros e técnicos.

 

2 – Diferente financiamento e separação entre prestador e financiador

Na Europa, todos os sistemas de saúde de base ideológica semelhante ao nosso, têm feito a sua evolução e em quase todos começa a haver uma nítida separação entre prestador e financiador – o dinheiro segue o doente. Se bem que o financiamento público deva continuar prevalente, deve ser feito através de uma entidade pública autónoma (Fundo Financeiro do Sistema de Saúde – FFSS) com entidade jurídica, que a liberte dos ciclos partidários, mas sujeita a auditoria e fiscalização, como qualquer organismo público .

Será a FFSS, que contratará com os diferentes operadores de saúde devidamente certificados – públicos, privados, sociais – os cuidados de saúde em termos de equidade e universalidade de cuidados. Igualmente competirá a esse fundo, consoante o modelo traçado, financiar atividades de saúde pública, medicina preventiva, cuidados continuados e paliativos, encargos farmacêuticos extra hospitalares e, em parte, a formação.

O financiamento privado poderá atingir diversas formas: desenvolvimento e evolução de subsistemas (ADSE e outros) para seguros integrais de saúde; seguros integrais após ”opting out“ do SNS; seguros complementares só para obtenção de serviços hoteleiros diferenciados e acesso a terapias de bem estar ou natureza estética, etc.

Mesmo melhorando a situação financeira do País, as exigências crescentes da saúde não permitem que o financiamento público seja suficiente. Daí, ser necessário, afetar ao financiamento para a saúde um contributo suplementar – taxa especial para a saúde– que será coletada em termos a definir, junto de contribuintes com rendimentos superiores a 20 000 € e que não estejam protegidos por subsistemas ou seguro integral de saúde (a lançar). Em contrapartida, o Sistema de Saúde Português passará a assumir a sua hibridez (uma espécie de ADSE – alargada), poderá atenuar ou neutralizar o subfinanciamento, permitirá uma melhor acessibilidade e assumirá uma maior responsabilização perante a sociedade.

 

3 – Reformular o modelo de prestação

O modelo de funcionamento de saúde pública – continuará depende do Ministério da Saúde e da Direção Geral de Saúde  com as mesmas capacidades e competências.

A gestão dos Centros de Saúde, bem como as USFs, passará a ser autónoma, assumida em regime a estudar, pelos próprios médicos de família, mediante contratos efetuados com os Departamentos de Saúde Municipal que, para o efeito, serão financiados de preferência por capitação pelo FFSS. Além das funções assistenciais que devem ser multidisciplinares e incluir outras competências, devendo ser valorizadas ações de educação para a saúde, prevenção primária e secundária da doença, diagnóstico e tratamento de situações agudas não hospitalares, diagnóstico e seguimento de doenças crónicas e promoção do envelhecimento ativo. A gestão e funcionamento dos CS obedecerá a um modelo genérico, mas pode ser adaptado às circunstâncias locais, sazonais ou outras e variar em função de diretrizes municipais de quem são dependentes. Os Centros de Saúde ou USF, podem assumir maiores dimensões, incluindo possuir meios complementares de diagnóstico próprios ou mesmo modelos de policlínicas sem internamento, mas com outras valências médicas .

A prestação hospitalar pública ou privada, só pode ser exercida em mercado regulado e a sua implantação, condicionada a uma carta hospitalar de inserção de equipamentos hospitalares. Todas as Unidades devem ser certificadas, tanto sob o ponto de vista físico como funcional, pela Entidade Reguladora da Saúde e submetidas regularmente a auditorias que fundamentem a manutenção dessa certificação. As unidades prestadoras hospitalares também devem ser classificadas tendo em conta a tipologia da sua diferenciação, centros de referência, funções de ensino, dimensão e classificação num ranking de qualidade.

O Estado deve deter o capital de hospitais mais diferenciados, de valor estratégico no ensino e regulação, mas devem ser geridos como empresas públicas autónomas integradas no mercado da saúde. Os outros hospitais podem ter estruturas societárias diversas, desde totalmente pública, privada ou de empresas municipais. A acessibilidade será de livre escolha informada e o financiamento será essencialmente através do pagamento por preços compreensivos negociados com entidades financiadoras envolvidas, sendo o FFSS a entidade financiadora pública .

Devem ser mantidas as Unidades Locais de Saúde que obedeçam a uma lógica integradora de cuidados, com financiamento por capitação e de gestão pública ou privada, mas em que os cuidados hospitalares poderão ser prestados por Unidades públicas ou privadas implantadas na área geográfica e com as quais sejam celebrados contratos ou acordos.

Conforme as modernas tendências e as realidades socioeconómicas da população, todas as unidades prestadoras e financiadoras devem dar uma enfâse crescente aos cuidados domiciliários, cuidados de convalescença e de envelhecimento ativo.

Os cuidados continuados e paliativos devem ter uma prestação predominantemente privada ou social, com financiamento misto (saúde e segurança social). O acesso será mediante mecanismos desburocratizados, de livre escolha e com recurso a uma rede integrada e certificada, geograficamente distribuída e dentro de um mercado de oferta regulado e auditado.

 

4 – Liberdade de escolha

A liberdade de escolha pelo cidadão é prática corrente em quase todos os Países europeus. Para essa liberdade ser efetiva, necessita de oferecer ao cidadão um conjunto de instrumentos informativos e da parte dos prestadores uma total transparência na sua forma de comunicar. As entidades financiadoras são um dos vértices deste triângulo fazendo um acompanhamento rigoroso do trajeto de cada cidadão no sistema de saúde.

Uma melhor literacia em saúde e o conhecimento por parte dos cidadãos do custo financeiro dos atos, também é uma premissa importante para o exercício da liberdade responsável. A utilização dos sistemas de informação e da IA, irá no futuro ajudar a uma escolha consciente do cidadão que poderá escolher entre os diferentes prestadores devidamente certificados.

A liberdade de escolha atingirá todos os patamares do sistema de saúde e implicará que os prestadores assumam regras do mercado com todas as suas vicissitudes e obrigações, dentro de um processo regulatório que garanta a todos o direito à saúde, impeça desnatações e garanta a acessibilidade.

 

5– Os profissionais de saúde

Se bem que os médicos ainda sejam pilares fundamentais do Sistema de Saúde, outras profissões vão ganhando importância, principalmente na composição de equipas de saúde. Nas profissões da saúde há um processo dinâmico de intervenção que deve ser gerido de modo a garantir a autonomia de cada, mas preservando competências definidas pelas suas Ordens profissionais.

A “funcionalização “ médica é anti natural e tem-se revelado, na generalidade dos casos, pouco eficaz e desmotivadora. Todas as organizações prestadoras devem manter com os médicos relações de parceria assente em pilares que conjuguem eficiência, qualidade, resultados e autonomia técnica e remuneração . Deve ser favorecido o trabalho em exclusividade. Os próprios mecanismos de concorrência criarão condições propícias.

As hierarquias técnicas serão garantia de qualidade de atualização e devem ter um papel crucial na implementação de guidelines, acesso à inovação, medicina baseada na evidência / exatidão e na interface com os órgãos de gestão nomeadamente no estabelecimento e controle de preços compreensivos.

Deve ser objeto de imediata reflexão, o papel médico e de outras profissões nas tecnologias de informação e na crescente introdução da IA no apoio à decisão. A inovação no diagnóstico e na terapêutica bem como os mecanismos de vigilância clínica, necessitam de uma medicina mais personalizada, com novos enquadramentos laborais dos profissionais, centrada no cidadão e socialmente sustentável.

Sabendo-se que os RH têm o maior impacto no orçamento, a reforma da sua inserção institucional nos dois setores – público e  privado – deve ser adequada à  função, dependente do modelo organizativo de cada prestador, desde que obedeça a normas de qualidade, segurança e boas práticas, genericamente definidas pela ERS ou por um Instituto de Qualidade e Segurança em Saúde com o aval das Ordens Profissionais

 

6– Papel do Ministério da Saúde

Independentemente do seu papel de representação e definição política, ao Ministério da Saúde, compete traçar as linhas estratégicas de modo a garantir a equidade, a acessibilidade e a universalidade de cuidados a todos os cidadãos. Compete-lhe intervir sempre que haja desvio de objetivos ou não estejam a ser cumpridas as diretivas legais. Junto do Governo e do Ministério das Finanças deve assegurar em Orçamento de Estado, as verbas adequadas ao funcionamento do Sistema de Saúde. Compete-lhe o licenciamento das Unidades Públicas e Privadas, mediante regras técnicas e de densidade distributiva .

Serão dependentes do MS: a Direção Geral de Saúde e a Saúde Pública; os Sistemas de Informação da Saúde, o Infarmed; o IGAS ; a Emergência Médica e outros órgãos ou Comissões que existam ou se criem para o Planeamento e supervisão / coordenação de atividades em Saúde. As atuais ARS serão convertidas em agências de contratualização do FFSS.

A ERS, além das suas funções num mercado regulado, terá um papel reforçado na execução de auditorias, nas certificações das Unidades Prestadoras bem como no acompanhamento do seu funcionamento qualitativo e no relacionamento destas com os clientes ou cidadãos.

 

7– Inovação e investigação

O progresso e a inovação em saúde constituem hoje um vetor fundamental nas preocupações das sociedades modernas. A longevidade como consequência de um viver saudável e de uma melhor e mais atempada intervenção na doença, estão a criar tenções em todos os atores intervenientes na saúde. O papel da genética na medicina de exatidão e o bom uso da IA, necessitam de uma investigação com uma translação eficiente e célere e respeitadora da bioética, que contribua igualmente a estancar os custos exponenciais com a saúde. Talvez assim, seja possível no futuro, suster a espiral de crescimento de verbas dedicadas à saúde.

O Governo, as Universidades, os Centros de Investigação bem como as Unidades Prestadoras, devem trabalhar em rede, por onde fluam informações que permitam através do tratamento de mega dados, o desenvolvimento de novas moléculas e novos equipamentos de diagnóstico – assegurar a longevidade e o viver saudável.

 

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