Chega o verão, mas nem todos conseguem desligar. Afinal, por que é que o descanso se tornou tão difícil, mesmo nas férias?
Quando o trabalho vai de férias connosco
Entre as causas mais significativas, destaca-se a crescente dissolução das fronteiras entre o espaço pessoal e profissional. A ubiquidade da tecnologia tornou praticamente impossível a separação entre “tempo de trabalho” e “tempo de descanso”.
A mera presença de um smartphone no bolso basta para manter ativo o circuito de vigilância cognitiva que associa notificações ao dever, ao risco ou à urgência. A antecipação de potenciais problemas, mesmo na ausência concreta de qualquer crise, alimenta o sistema límbico, mantendo o cérebro num estado de alerta basal. Assim, mesmo quando fisicamente distantes do local de trabalho, muitos indivíduos permanecem mentalmente vinculados às suas obrigações profissionais.
O desconforto de parar
Contudo, a questão vai além da tecnologia. Muitos sujeitos sentem um mal-estar profundo ao confrontarem-se com o vazio da ausência de tarefas. Para quem vive em permanente estado de ativação, o silêncio das férias pode ativar desconfortos emocionais latentes. Em contextos de sobrecarga crónica, é comum que o trabalho sirva de estrutura, de escape e até de anestesia emocional.
Ao retirar-se esse “barulho funcional”, emergem ansiedades, frustrações ou questões internas que foram adiadas indefinidamente. O trabalho, nesse sentido, funciona como um mecanismo de evitamento psicológico: não se descansa porque, paradoxalmente, descansar implicaria contactar com partes de si que foram sistematicamente ignoradas.
Produtividade: o novo descanso?
O próprio discurso cultural vigente também contribui para a dificuldade em desconectar. Vivemos num modelo social que valoriza a produtividade contínua, onde a pausa é frequentemente lida como preguiça ou ineficiência. Em muitas organizações, o estatuto profissional está tacitamente associado à disponibilidade constante, alimentando um clima de presenteísmo disfarçado de dedicação.
Este contexto perpetua a ideia de que o trabalhador ideal é aquele que, mesmo de férias, continua a acompanhar emails, a manter-se “alinhado” com os projetos ou, no mínimo, disponível para qualquer eventualidade. Este tipo de norma dissimulada é particularmente prejudicial para a saúde mental, pois inibe a possibilidade de um “verdadeiro desligar”, mesmo quando formalmente se está de férias.
Cérebro em alerta: quando o corpo quer parar, mas a mente não deixa
Do ponto de vista neuropsicológico, é relevante considerar que o cérebro, exposto a longos períodos de stress e ativação contínua, pode perder a capacidade de transitar facilmente para estados de relaxamento. O sistema nervoso autónomo, regulado entre os polos simpático (alerta, ação) e parassimpático (descanso, recuperação), pode ficar funcionalmente desregulado em situações de stress prolongado.
Em consequência, mesmo em contextos teoricamente seguros e propícios ao descanso, como uma praia ou uma casa de campo, a mente permanece inquieta, num estado de hiperatividade cognitiva e emocional que impede a experiência plena do presente.
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Respirar, sentir, estar: o que realmente ajuda a desligar
Neste cenário, é fundamental recorrer a estratégias que favoreçam, de forma intencional, a reativação do sistema de descanso e recuperação. A neurociência tem mostrado que técnicas simples, como a respiração diafragmática profunda, têm um impacto real na descida da frequência cardíaca e na ativação do sistema parassimpático. Praticar alguns minutos diários de respiração consciente, com foco no ritmo e na expansão abdominal, pode funcionar como um interruptor biológico para o estado de repouso.
Do mesmo modo, práticas de atenção plena, como caminhar na natureza em silêncio, observar conscientemente os estímulos sensoriais envolventes ou realizar tarefas manuais com presença total, ajudam a reduzir a ruminância mental e a reconectar o corpo ao momento presente. Estas práticas, além de acessíveis, têm demonstrado eficácia na redução de sintomas de ansiedade e na melhoria da regulação emocional, mesmo em pessoas com elevado nível de ativação basal.
Férias com (des)compromisso: como criar tempo para não fazer nada
Outro aspeto relevante é a estruturação do tempo de férias de modo a permitir momentos de verdadeiro descomprometimento. Isto não significa planear obsessivamente as atividades de lazer, mas sim criar espaços onde não exista nenhuma exigência de utilidade, produtividade ou validação externa.
Atos tão simples como ouvir música com atenção, sentir os pés descalços no chão, tomar um pequeno-almoço prolongado sem distrações digitais ou assistir ao pôr do sol sem registar o momento em fotografias contribuem, de forma discreta, mas poderosa, para a reconfiguração dos circuitos cerebrais associados ao descanso. A própria memória emocional desses momentos, quando vividos com presença, constitui um reforço positivo que facilita a repetição do comportamento.
Descansar sem culpa: a permissão que falta
Por fim, torna-se essencial o desenvolvimento de uma atitude interna de permissão. Muitas pessoas, mesmo em contexto de férias, não se autorizam a descansar plenamente, seja por culpa, por medo de julgamentos alheios ou por uma autoexigência inflexível. Cultivar uma narrativa interna mais compassiva e realista, que reconheça o descanso como uma necessidade fisiológica e emocional legítima, é talvez o passo mais transformador neste processo.
O descanso é um direito, não um luxo
A dificuldade em descansar nas férias não é apenas um subproduto da modernidade, mas o reflexo de uma cultura que glorifica a produtividade e de um corpo cronicamente habituado à vigilância. Reconhecer estes padrões é essencial para recuperar o valor do repouso, não como ausência de trabalho, mas como um espaço interno legítimo onde se possa, finalmente, estar.
Já pensou se consegue mesmo descansar nas férias? Ou o seu corpo já se habituou a não parar?
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